Lutou contra a ditadura de Salazar
e depois contra a deriva comunista da Revolução dos Cravos
Mário Soares, em uma imagem de 2006 NICOLAS ASFOURI AFP
O ex-presidente de Portugal Mário
Soares morreu neste sábado, num hospital de Lisboa, aos 92
anos. Soares, também fundador do Partido
Socialista português, estava em estado crítico desde que deu entrada
no centro médico em 13 de dezembro passado. É impossível compreender este
último meio século dePortugal sem
ele. Noventa e dois anos dão para muita coisa, mais ainda num homem inquieto
desde jovem, escritor infatigável (dizia ter escrito mais de 100 livros), de
personalidade forte para aguantar os porões da ditadura e também para ir contra
a deriva comunista da Revolução dos Cravos.
Soares (Lisboa, 1924) foi o primeiro-ministro do
primeiro Governo Constitucional, entre outros (1976-78 e 1983-1985), em cujo
mandato foi criada a seguridade social e ampliada a escola pública para todos,
além da entrada naUnião Europeia.
A grande figura do socialismo português filiou-se ao PC com apenas 18 anos, na
universidade, porque o via como a única boa organização para a luta contra a
ditadura de Salazar.
Ficou lá durante seis anos, até se irritar com tantas regras e reuniões,
segundo conta num de seus vários livros.
Em 1964, foi um dos fundadores da
Ação Socialista, berço do PS. Advogado de profissão, fez amizade com o general
Humberto Delgado, posteriormente assassinado pela PIDE (polícia secreta de
Salazar). Soares se encarregou de recuperar seus restos mortais em Extremadura,
e a partir daí entrou na lista negra do regime.
Foi preso em 12 ocasiões, ficando no total três
anos atrás das grades, parte deles em Santo Tomé e Príncipe, uma das colônias
portuguesas para onde Salazar enviava os presos políticos. Ali soube que
Salazar havia caído de uma cadeira, o que comprometeu os movimentos do ditador
até sua morte.
Soares sempre conjugou a luta com o pragmatismo.
Aproveitava cada espaço que lhe deixavam, e por isso não desistiu de disputar
as eleições legislativas convocadas em 1969 por Marcelo Caetano, sucessor de
Salazar. Sua organização, a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD)
apresentou-se em Lisboa, Porto e Braga, na companhia de sua esposa, Maria
Barroso, não menos combativa e morta há um ano, aos 90. Fracassaram, claro, e
Soares se exilou em Paris, onde entrou em contato com a intelectualidade
socialista internacional e comunistas que haviam fugido, como o espanhol
Santiago Carrillo, com quem construiu uma forte amizade.
Ali ele esteve até que irrompeu a Revolução dos
Cravos em seu país. Aquele 25 de abril de 1974 tirou-o da cama na Alemanha. Sua obsessão
foi chegar primeiro a Lisboa; voou até Paris, pegou um trem para a Espanha e
dali para Lisboa. Foram dois dias de viagem nos quais, para a sua surpresa, ia
reunindo o apoio das pessoas. Soares conseguiu seu objetivo: chegou no dia 28,
dois antes do secretário-geral do Partido Comunista, Álvaro Cunhal, seu
companheiro-rival político durante toda a transição da ditadura para a
democracia.
Fiel ao seu lema de aproveitar as oportunidades,
Soares aceitou entrar no Governo Provisional do general Spínola. Foi a primeira
discrepância com Cunhal e também com o próprio partido, que não queria tanto
envolvimento. Em dezembro de 1974, no primeiro congresso do PS na legalidade,
Soares teve de mostrar toda a sua coragem para se impor às correntes propensas
à união com as forças comunistas. Eram dias revoltos, com governos multicores
que caíam em semanas, as ruas cheias de manifestações protagonizadas por algum
dos múltiplos partidos marxistas. Soares ganhou, e seu próximo passo foi manter
distância do PC, o que não era fácil naqueles tempos, quando a pessoa era
rapidamente marcada com a cruz de contrarrevolucionário.
Soares suportou a pressão, opondo-se também à
unidade sindical – em torno do PC. As mais heterogêneas forças comunistas
dominavam as ruas, e naquele tempo a rua era tudo. Inclusive cercaram a
Assembleia da República, que tinha de redigir a Constituição, impedindo a saída
dos deputados. Mas uma coisa era encher a rua e outra encher as urnas. As
eleições constituintes de 25 de abril de 1975 deram vitória ao Partido
Socialista (38% dos votos). O PCP ficou com apenas 12,5%. O resultado não
acabou com as disputas, pois, com a ajuda das forças armadas, foi instalado no
país o PREC (Processo Revolucionário em Curso) – em especial durante o verão de
1975, o “verão quente” –, num ano durante o qual os bancos e a cerveja foram
nacionalizados. E com Governos de unidade nacional sob a vigilância das forças
armadas.
Aquele primeiro Primeiro de Maio sob um regime
democrático depois de meio século foi a ruptura absoluta com as forças à
esquerda do PS. Soares e seu partido foram impedidos de participar dos atos
sindicais unificados. Soares decidiu dar um passo que seria decisivo: só o PS
iria sair às ruas, sem apoio de outras forças políticas ou sindicais. Sua
primeira manifestação, a da Fonte Luminosa, ficou na memória de sua transição.
“Marcou o ponto de virada da linha revolucionária insensata que, se não tivesse
sido detida da forma que foi, teria arrastado Portugal para o abismo”,
recordava Soares em um de seus livros de memórias.
As eleições realizadas meses depois confirmaram a
mudança de rumo de Soares. Nova vitória do PS (35%), seguido pelos partidos
conservadores PPD (24%) e CDS (16%) e, em quarto lugar, pelo PC (14%). Ainda em
minoria, Soares formou seus primeiros governos (1976-78).
Soares consolidou a democracia em Portugal, dotou
o país de infraestruturas básicas (do Serviço de Saúde Universal à entrada na
União Europeia) e permitiu que começassem a se suceder governos de outras cores
políticas. Foi presidente de Portugal (1986-1996), eurodeputado, e se retirou
da linha de frente da política depois do fracasso, em 2006, de sua terceira
candidatura à presidência do país, já com 82 anos de idade. Isso não
significava que tivesse abandonado a política. Por essas coisas curiosas da
história, no último ano viu o que tinha protagonizado 40 anos antes, um Governo
socialista, graças ao apoio de comunistas clássicos e neoclássicos. Soares não
se assustou, pelo contrário, isso lhe pareceu correto. Mário Soares foi até o
último dia o oráculo de Portugal e do socialismo − e, definitivamente, do
soarismo português.
http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/07/internacional/1483804308_975289.html
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